Levado a limite, o conceito de “empresa
jornalística” estende-se a qualquer indivíduo que, dispondo de CNPJ, mantenha
um blog, independente de qual seja seu modelo de negócios, se existir algum.
Por Nilson Lage no Jornal GGN
A Constituição Federal, no Artigo 222, determina
que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e
imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos,
ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede
no País.” (redação dada por emenda constitucional, em 2002)
Haverá como compatibilizar esse dispositivo
constitucional com a situação presente, de globalização da mídia eletrônica via
Internet e acesso plural tanto à fruição quanto à produção e emissão de
mensagens? A limitação estabelecida fere o direito à livre expressão do
pensamento, cláusula pétrea da Carta, considerado fundamento do estado de
direito.
Minha resposta é “dificilmente” à primeira
pergunta, e “provavelmente sim” à segunda.
A tecnologia de informação é dado de realidade
contra a qual a Constituição não poderia se erguer, salvo à custa de um
isolamento do país que não se pretende ou admite.
Levado a limite, o conceito de “empresa
jornalística” estende-se a qualquer indivíduo que, dispondo de CNPJ, mantenha
um blog, independente de qual seja seu modelo de negócios, se existir algum.
Nada impede que organizações sediadas ou pessoas
residentes em outros países cubram assuntos brasileiros e os divulguem na
Internet para serem acessados aqui.
A constituição de pessoas jurídicas no Brasil,
sempre possível, é um detalhe formal.
A mídia “estrangeira” no Brasil
Constituindo (o que deve ser o fato) ou não
empresas no país, alguns dos principais provedores de informação em língua portuguesa
sobre eventos ocorridos no Brasil pertencem ou se vinculam a empresas estatais
ou assemelhadas (RFI, BBC, DW, Sputnik, Xinhua) e privadas (El País, CNN, Fox).
Encontraram amplo espaço no mercado local dada a oligopolização e ao discurso
único da grande mídia brasileira ancorada em um suporte econômico
(financiadores, agências de publicidade e principais anunciantes) igualmente
oligopolizado e intransigente quanto a seus interesses.
Representam importante segmento empregador de
jornalistas.
Trata-se de flanco que se abriu no contexto de uma
guerra ideológica, de modo que a mídia importada foi sentida por formadores de
opinião como portadora de ar fresco e ideias plurais. O mesmo não ocorre,
decerto, em outros países.
A guerra midiática
Não foi sempre assim. O que aconteceu com a mídia
brasileira foi uma ação coordenada de agentes financeiros e do Estado que se
arregimentaram, após o golpe de 1964, para calar qualquer dissidência, mesmo
conservadora, filtrar a informação que chega ao público e, sobretudo nas
emissoras de televisão, gerir a mídia como instrumento de controle psicossocial
de massas.
Nem mesmo ao Estado tem-se permitido o livre
discurso ao povo porque o ambiente público dificulta a censura e a mentira. O
discurso de defesa do interesse nacional é igualmente sem propósito, porque os
interesses que, enfim, sobrevivem a tantos anos de batalha, embora
eventualmente de corporações ou segmentos da economia brasileira, meramente
refletem políticas e ambições transnacionais.
No passado, a mídia plural
Antes de 1964, o Brasil dispunha de ampla
pluralidade ideológica.
O rádio, veículo eletrônico a que as massas tinham
acesso, era dominado pela Rádio Nacional, emissora de Estado sem viés político,
e se distribuía por centenas de outras. A televisão, então voltada para a elite
cultural e classes médias, dividia audiência entre emissoras dos Diários
Associados espalhadas pelo país e outras, com destaque para as redes Excelsior
e Record.
No Rio de Janeiro, que deixara há pouco de ser
capital da República, circulavam mais de dez jornais diários impressos de
tiragem apreciável — da Última Hora que apoiava o governo trabalhista, ao
Diário de Notícias, de tradição nacionalista, o vespertino O Globo e os mais
antigos; Correio da Manhã, de 1901, em que pesava muito a opinião da redação, e
Jornal do Brasil, de 1891, órgão ligado à Igreja Católica que se modernizara na
década de 1950 e formava opinião nas novas gerações intelectuais.
Sobreviveu, desses, apenas O Globo, associado à
rede de televisão hegemônica que se formaria nos anos 1970 com forte injeção de
dinheiro público, a partir de duas emissoras, no Rio de Janeiro e São Paulo,
fundadas com recursos e know how dos americanos da Time-Life. Correio, Diário e
Ultima Hora fecharam, por perseguição policial e boicote econômico; o Jornal do
Brasil resistiu um pouco mais, em demorada decadência que se acentuou com a
descaracterização de sua linha editorial em sucessivas mudanças de gestão.
O mesmo processo de corrosão da pluralidade ocorreu
por todo o país, com a centralização do fluxo de notícias, o fechamento de
sucursais e demissão de correspondentes. Em São Paulo, sobreviveram o Estadão,
expoente da oligarquia paulista, e a Folha, bafejada pelo apoio à repressão na
década de 1970.
A questão da responsabilidade editorial
Leia também: Sobre a redução da presença negra na
sociedade argentina, comentário de Pietro
O parágrafo segundo do mesmo Artigo 222 estipula
que “a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da
programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há
mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social”. (redação também da
emenda de 2002)
É dispositivo de aplicação mais viável, embora suas
consequências sejam ainda formais, conduzindo à delegação de responsabilidade a
testas-de-ferro ou, como se diz hoje, “laranjas”.
O dispositivo serve à retaliação contra blogueiros
e até contra veiculadores de informações em redes sociais abertas, como o
Youtube ou o Facebook, restando definir claramente o que é “informação
jornalística”
Sobre a posição da ABI
Pedem-me opinião sobre a atitude que a Associação
Brasileira de Imprensa deve adotar diante da cobrança ao Supremo Tribunal
Federal de melhor interpretação — ou regulamentação — desse dispositivo
constitucional.
Meu ponto de vista é que todos esses aspectos devem
ser considerados, buscando-se normas cabíveis na realidade e que contemplem o
direito de as pessoas serem informadas, com prioridade sobre o direito, ou
dever, de informar que se atribui aos veículos e aos jornalistas.
Proponho, pois, uma presença institucional
independente, sem afiliação prévia a escolhas cujas consequências não se tenham
ponderado.
FONTE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS JORNALISTAS
https://jornalggn.com.br/artigos/reflexoes-sobre-a-globalizacao-da-midia-por-nilson-lage/